[…] “Para mim são, maioritariamente, heróis. Ao pé deles [pais], sinto que todos os meus dramas do quotidiano são ridículos e evito abrir a boca para me queixar junto de quem tem tanto peso às costas, mesmo quando tem um espírito leve e faz parecer fácil gerir todas as questões que se põem no dia-a-dia.” Quando estou com pessoas com filhos portadores de deficiência fico sempre envergonhada por não agradecer todos os dias (não sei se a Deus, ou ao destino, ou à natureza) por ter filhos saudáveis, pelo menos até ver (que todos devíamos ter bem presente que a deficiência também pode ser adquirida e ninguém está livre de ver a vida virar-se do avesso). Quando digo que devia agradecer todos os dias, não significa que esses pais, de meninos diferentes, sejam dignos de pena, de piedadezinha, de comiseração (juro que senti o vosso rosnar raivoso). Óbvio que não. Para mim são, maioritariamente, heróis. Ao pé deles, sinto que todos os meus dramas do quotidiano são ridículos e evito abrir a boca para me queixar junto de quem tem tanto peso às costas, mesmo quando tem um espírito leve e faz parecer fácil gerir todas as questões que se põem no dia-a-dia. No outro dia, falava com uma amiga com um filho com deficiência que me dizia que uma das coisas que mais a irritava era ouvir pais na mesma situação dizerem coisas como “Isto foi a melhor coisa que nos aconteceu” ou “é uma alegria que só toca a alguns, porque estas crianças são tão especiais”. Ela revirava os olhos. E dizia: “É evidente que adoro o meu filho, apesar das suas imensas dificuldades, e que agora que o tenho não o trocava por nada. Mas não me lixem: se me dissessem se preferia que tivesse nascido sem deficiência, não hesitava! Amo o meu filho, com o mesmo amor incondicional que os pais têm pelos filhos, mas a nossa vida é muito complicada, muito dura! Além disso, diz-me lá: alguma vez conheceste alguém que esteja grávida a desejar que o filho nasça deficiente?” Percebo que quem o diz, o faça como uma defesa. Justamente para rejeitar o rótulo de “coitadinho”. Ou que o faça no sentido de mostrar que o amor pelos filhos não se mede pela “normalidade” – como é evidente. Ainda assim, a vida dos pais de crianças (e jovens, e adultos – porque as pessoas com vidas comuns esquecem-se de que estes pais vão ter de acompanhar os filhos até eles serem velhos, assim consigam lá chegar) está longe de ser pera doce. Depende sempre do nível de autonomia, ou falta dela, mas há casos gritantes de vidas que mereciam um acompanhamento tão especial como elas são, e que, infelizmente, não têm mais do que um doloroso esquecimento por parte de quem toma decisões. Tenho uma amiga com uma filha com Síndrome de Rett, uma doença raríssima que faz com que ela não fale e não ande, não tenha um normal desenvolvimento cognitivo (entre uma série de outras problemáticas). Ainda assim, esta minha amiga é uma dessas almas luminosas que parecem levar tudo com uma leveza transcendente. Porém, quando puxo por ela, para que desabafe, aquilo que sinto que lhe custa mesmo é o desamparo do Estado. No outro dia, dizia-me que o subsídio que recebe não chega, sequer, para pagar as fraldas do mês. Recebe 185 euros mensais para uma filha com 95% de incapacidade. Ora, a sua Maria precisa de terapias várias, nomeadamente para que o corpo não se deforme, precisa de cadeiras de rodas diferentes, à medida do seu crescimento, e até de cirurgias que, não fosse ela ter um seguro de saúde, ficariam em espera até a filha não suportar mais as dores excruciantes de uma coluna toda retorcida. A cirurgia foi indicada pelo hospital como urgente há mais de um ano – a coluna da Maria estava literalmente a transformar-se num “u”, e ela toda dobrada para um dos lados — e há mais de um ano que ninguém a chama da Estefânia para a sua realização. Os subsídios para filhos com necessidades especiais não dependem do escalão de IRS dos pais. São iguais para ricos, pobres ou remediados. Mas que não se pense que a Segurança Social vai ter com os pais com este problema em mãos e diz: “Façam atenção que têm aqui direito a subsídios, para vos ajudar”. Esqueçam. Se não pagarem uma prestação qualquer, eles entram em contacto na hora e são capazes de penhorar bens antes de piscarmos os olhos duas vezes. Mas quando é para pagar, assobiam para o ar a ver se passa. Se as pessoas não se mexerem, não revirarem a lei, se não andarem atrás, não recebem absolutamente nada. Não é automático. É burocrático. É difícil, para não dizer impossível, para pessoas menos diferenciadas, que não fazem nem ideia de como se mexer nos meandros da papelocracia. Além disso, há sempre a questão das escolas. Fala-se muito de inclusão,mas o feedback que tenho é o de que, vezes demais, está longe de funcionar. Quando se trata de um grau de incapacidade muito grande, a maioria das escolas nem sequer aceita as crianças por não ter quem as acompanhe. Nesses casos, ou há condições económicas para se pagar a alguém que fique em casa com a criança, ou um dos pais tem de deixar de trabalhar para o fazer. Já conheci muitos pais ou cuidadores em situações de absoluto desgaste físico e mental, que nunca mais saíram de casa, que nunca mais tiveram uma vida social, porque vivem 24 sobre 24 horas a acompanhar filhos acamados, ventilados, com necessidade de serem aspirados, virados na cama, alimentados por sonda. A resposta do Estado? Pouco ou nada. Ainda relativamente às escolas, se o grau de necessidade educativa especial for menor, até podem ser aceites mas, quando não há professores de ensino especial em sala, para acompanhar estes miúdos, eles dificilmente acompanham a turma, sentem-se à margem, os ditos “normais” sentem que está ali um “corpo estranho”, os professores do ensino regular também não conseguem gerir aquela diferença sozinhos, e tudo resulta num trágico começo para crianças que, bem estimuladas e integradas, podiam chegar longe, integrar-se muito mais facilmente na sociedade, e virem a ser cidadãos com trabalhos e vidas mais autónomas, e sem dependerem de subsídios […]. Sónia Morais dos Santos Texto completo disponível em: https://observador.pt/newsletters/coisas-de-familia/os-multiplos-desafios-de-ter-um-filho-com-deficiencia/