Maria de Sousa Pereira Coutinho
Observador, 10/5/2017
O “frenesim reformista” do Ministério da Educação, pedagogicamente ultrapassado, põe em causa não só a estabilidade do trabalho nas escolas, mas também a essência das várias áreas do sistema educativo.
A educação é um processo complexo, mas fundamental e decisivo, em qualquer sociedade e em qualquer época; contudo, no nosso tempo, assume contornos de maior complexidade e até de emergência; seria, portanto, de nos congratularmos, na expectativa de, em resposta aos grandes desafios de hoje, com o facto de surgirem novas tomadas de consciência e novas respostas, no contexto do processo educativo e das instituições educativas, de modo a atingirem as suas finalidades. Tem vindo a ser anunciada mais uma reforma do sistema educativo, em Portugal. Os cidadãos aperceberam-se, no entanto, de que a anunciada “revolução na educação”, que está a ser preparada, na ausência de uma participação activa e efectiva da sociedade civil, caso viesse a ser implementada, não conseguiria resolver e até agravaria os problemas que se colocam à crise por que passam, hoje, os sistemas educativos. De facto, a recente proposta de reforma do sistema educativo, situada entre consensualidades óbvias e ideologias, algumas “em versões débeis”, próximas do ideal da pós-modernidade cultural, aponta para teorias educativas (muitas delas já ultrapassadas) que, como salienta Henry Giroux, provocaram pouco consenso, muita confusão e até bastante discórdia, tendo-se saldado por um relativismo e por uma manifesta capitulação perante a verdade. Por isso, este “frenesim reformista” do Ministério da Educação, contendo, como avisou o secretário de Estado da Educação, “alterações profundas” (algumas lamentavelmente já implementadas de forma imposta e abrupta), apostando em estratégias e metodologias, anteriormente experimentadas e pedagogicamente ultrapassadas, põe em causa não só “a estabilidade do trabalho nas escolas …”, mas também a essência das várias áreas que integram um sistema educativo. Refira-se, neste sentido, o cenário de enormes dificuldades e incertezas para que aponta a anunciada “flexibilização pedagógica”. O que se vislumbra, como certo, é uma enorme complicação pedagógica, logo no plano da sua exequibilidade, com graves prejuízos para os alunos, para os docentes, bem como para a escola, que perderá autonomia, apesar da afirmação de que às escolas é dada mais autonomia. Entende, contudo, o Secretário de Estado da Educação que “flexibilidade e autonomia é deixar as coisas acontecer”. A par da flexibilização pedagógica, foi apresentado o documento sobre “O perfil dos alunos para o século XXI à saída da escolaridade obrigatória”; este documento provoca tanta perplexidade como preocupação; sobressai nele o tema da cidadania e a questão, tão controversa como problemática, da “educação para a cidadania”. O tema da cidadania adquiriu, na verdade, na última década do século XX, uma visibilidade muitíssimo significativa, em abordagens e em perspectivas, tendo vindo a ocupar, cada vez mais espaço na filosofia política dos últimos anos. E, como refere Philippe Perrenoud, a palavra cidadania, que estava fora de uso, voltou a estar na moda. Porém, se o conceito de cidadania contém dificuldades, o da “educação para a cidadania” encontra-se, hoje, enquadrado numa “enorme diversidade de situações e de perspectivas, para onde têm vindo a confluir os principais dilemas ideológicos do nosso tempo”. Com o objectivo da conservação ou da promoção das sociedades democráticas, através de uma construção do homem em que se pode tornar o indivíduo cidadão, a “educação para a cidadania” tem sido considerada, num verdadeiro encantamento social e político, como remédio para todos os males actuais. Não parece, contudo, ser de sustentar uma “educação para a cidadania” entendida em função da legitimação do Estado, da coesão social ou da estabilidade social. Tal concepção, que tem como base o exercício de uma “racionalidade instrumental”, mostra que estamos diante não só de um empobrecimento do conceito de educação, que é de recusar, mas sobretudo da sua negação, uma vez que se trata de uma formatação, operada pelo Estado que, absolutizando o seu poder, o impõe à vida de todos, apresentando-se como uma espécie de “guardião” moral dos “discursos” e das “consciências”, fazendo dos indivíduos servos. Podemos, deste modo, perguntar se o objectivo de contribuir para a construção de sociedades mais desenvolvidas, mais igualitárias e mais democráticas, não significa apenas adaptação dos cidadãos às condições da sociedade actual, na qual, como refere Manuel Castells, estaríamos perante um homem-produto ou, no dizer de Miguel de Unamuno, perante um homem que, sendo único e insubstituível, corre o risco de se trocar por um outro eu, um eu de mercado, sujeito à oscilação dos preços. Relativamente à chamada “pedagogia das competências” (ideário desta proposta de reforma educativa), refira-se, precisamente, a questão das ”competências”, usadas, tanto no meio empresarial como educacional. Trata-se de um tema que exige, no exercício de um espírito crítico, aturada reflexão, uma vez que estamos perante um conceito ambíguo, não se sabendo, efectivamente, o que são nem a partir de que critérios são deduzidas e estabelecidas. Baseando-se na teoria das competências que devem possuir os professores para ensinar, como profissionais (Philippe Perrenoud), em novos contextos, com vista ao sucesso escolar, a “pedagogia das competências” apresenta vários problemas, relativos à dificuldade, quer de perceber a sua novidade, quer de perspectivar a sua eficácia, nomeadamente a credibilidade dos seus resultados e a sua exequibilidade, nas diferentes etapas escolares. Mencionem-se também as dificuldades relativas à necessidade de repensar, num horizonte tão problemático como incerto, toda a formação dos docentes, uma vez que o exercício desta pedagogia implica uma outra concepção de currículo e exige uma reformulação e uma readaptação das metodologias, de equipamentos e de avaliações. Aquilo, porém, a que se está atendendo muito, hoje, na formação de professores (preocupação fundamental em todo o sistema educativo), é à pessoa do professor (Birgitta Fuchs), relativamente ao alcance e à responsabilidade da sua função pedagógica. Neste sentido, aposta-se na formação de profissionais, criteriosamente seleccionados e mais bem valorizados, proporcionando-lhes boas condições e exigindo-se-lhes competência humana e profissional que passa por conhecimento, capacidade de trabalho, dignidade de carácter, sensibilidade e empatia, na sua inter-relação com “as crianças e os jovens, verdadeiro tesouro de um país”. Mas a grande dificuldade da proposta de tal “engenharia educativa” para a escola diz respeito ao “ser a educar”, fazendo olhar, com imensa preocupação, para aquilo a que se pode chamar de “pragmatismo utilitário”; esta pedagogia tem mais a ver com os interesses da produção (em que o conhecimento é considerado como mercadoria) e da competitividade, do que com a proclamada autonomização dos alunos. Assim, tal “paraíso”, baseado no dogma da “aprendizagem através das competências”, implicando uma “pedagogia activa, centrada no trabalho de projecto e contraposta à pedagogia tradicional”, está, logo à partida, não só cheia de paradoxos e de dificuldades, mas também de grandes riscos. Da “revolução em curso na educação”, no nosso país (que parece apresentar-se como “imparável”), não podemos, assim, antever resultados positivos em relação à formação de cidadãos com grandeza humana e espiritual, enquanto objectivo universal da educação, da qual decorrerá competência para a autodeterminação, para as decisões democráticas e para a solidariedade. No centro de um sistema educativo deve situar-se o ser humano a educar, num horizonte de plenitude, ser que não é fechado nos seus próprios limites, mas um ser-a-caminho que se anulará como pessoa quando não entrar nessa dinâmica. A tarefa educativa consiste, na verdade, na capacidade de identificar e de acompanhar esta presente inquietação do homem, mantendo vivo o amor pelo saber, despertando o coração e pondo em marcha a sua razão e a sua liberdade. Educar não pode limitar-se a instruir, a transmitir informação, nem a transmitir competências; integra não só questões de autonomia, mas também problemas de autoridade, de tradição e de transmissão da cultura, uma vez que a continuação do mundo supõe que as novas gerações tomem os dados herdados das gerações anteriores e se reconheçam nessa herança como sucessores imprevisivelmente novos (Hannah Arendt), tornando possível um futuro melhor. Assim, proceder-se a uma reforma do sistema educativo não significa andar ao sabor de “progressismos que mascaram uma ideologia”, correndo o risco de a educação se converter na “mais larga e poderosa empresa de desumanização do homem” (Manuel Antunes).
Professora Associada com Agregação (Universidade Nova de Lisboa); Doutorada em Filosofia da Educação – Educação e Desenvolvimento