| Ainda a Marta… de carne, de osso e coração |

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Se tenho dores camuflam-nas com medicação. Se me falta o ar, dão corda na manivela que dá gás ao oxigénio. Se tenho dúvidas, traduzem a medicina para português, e se não têm resposta procuram-na em todos os cantos do meu corpo até a saberem da ponta da língua. São médicos e, na bata branca imaculada, vestem um juramento. Levantam a mão enluvada e, com ela, prometem agarrar a vida e mantê-la num equilíbrio ponderado sobre uma linha de trapézio indefinida para além dos passos. 

Mas há quem lhe pegue com as mesmas mãos e a faça maior. Há quem acredite que manter a cabeça à tona da água não vale o esforço se as braçadas não quiserem nadar oceanos. Há quem seja acrobata para saber saltar da corda bamba de braços abertos e olhos fechados. São médicos que tiram a bata e se descobrem feitos de carne e osso; que trocam os números pelos nomes e os processos pelas histórias; que, no livro onde assentam o valor, aprendem que o coração não se ouve com o estetoscópio e a alma não se alimenta por sonda. 

Tenho a sorte ou o acaso, de na rifa, ter semeado vários doutores da espécie. E entre eles há uma médica que de doutora só tem o título. Que, para mim, tem um nome maior. Tem o nome de alguém que me enxuta as dores com festas na cabeça e que me dá o ar em falta com passeios de janela aberta. 

No domingo, prescreveu-me o melhor dia de muitos dias. Na receita cedeu direito a frango assado, convívios improváveis e agradáveis, “rallies” de cadeira de rodas, “derbies” mal jogados, golos não repetidos, vinho para brindar e bitoques para rematar.

O Sporting perdeu, não sei se roubado ou vendido, mas o sorriso estampado na minha cara já dorida, esse nem comprado. Só visto. E os cantos da boca não distorceram o ângulo quando as portas do hospital se abriram para me fechar de novo, e o ar passou de puro a condicionado; nem quando as calças de ganga vestiram o pijama e os ténis calçaram pantufas. Os meus olhos não pararam de lançar foguetes em noite de artifício, quando se fecharam para sonhar com um mundo vivido do outro lado da parede.

Antes de passar a porta que dava lá p’ra fora, dei-lhe um abraço que veio cá de dentro, e repeti a palavra “obrigada” até lhe gastar o nexo. Agradeci porque na entrega despida de bata engomada e luvas esterilizadas, vestiu a pele que inscreve na medicina uma nova história. Um livro que trata matérias do coração sem limite imposto por seguro de vida; que, na dedicatória, escreve nomes próprios, e nos capítulos dá vida aos personagens. E quem o lê dá por si a respirar mais fundo, com o peito cheio de ar e o sangue mais rico de um oxigénio que dá saúde à vida.

Marta D’Orey