Linhas convergentes
Por Frederico Pimenta
Releitura dos documentos originais da história dos Salesianos em Portugal. Trabalho ímpar de tantos investigadores, com especial destaque para o Pe. Amador Anjos, historiador, conhecedor profundo e inspirador de dissertações e teses sobre a vida e obra dos Salesianos em Portugal.
Cronaca della Casa – Officinas de S. José – 1909 – Um detalhe
Difíceis foram os tempos iniciais da presença salesiana em Portugal e, no caso concreto, nas Oficinas de S. José (OSJ), em Lisboa, hoje denominadas Salesianos de Lisboa.
As dificuldades fizeram-se sentir no campo do pessoal disponível para a edificação do projeto herdado de D. Bosco e assinalam-se ainda dificuldades económicas e dificuldades registadas pelo ambiente social que se viveu ao longo do desenrolar da História da Obra Salesiana em Portugal. Nos seus alicerçados escritos, o Pe. Amador Anjos alude a este último aspeto, salientando os contornos da benemerência e do confronto sentido no início do século XX, mais concretamente nos anos que antecederam o período da Implantação da República.
Sob este particular, discorre (1) sobre a vivência sentida no espaço vizinho às OSJ, o Jardim da Estrela, e as emoções de confrontação que aí se fizeram sentir. Em causa está a constituição de um bazar de angariação de fundos para as OSJ, situado no Jardim da Estrela, no ano de 1909, e as dificuldades experimentadas.
Despertada desta forma a curiosidade, depressa parte-se para a releitura dos documentos, nomeadamente a Cronaca della Casa – Officinas de S. José (Crónica da Casa), no ano de 1909, inscrita em suporte físico de papel na Nova Agenda Commercial Portugueza para 1909, publicada no 27.º ano pela Papelaria e Tipografia Azevedo, de Manoel J. Alves D’Azevedo & Filho, do Porto.
No manuscrito Crónica da Casa, o autor, Pe. Agostinho Colussi, (2) insere recortes de jornais testemunhas do ambiente social e político vivido neste período da História nacional. Nesse trabalho, ocupou na Agenda anteriormente indicada os espaços dos dias 15, 16, 17 e 22 de junho de 1909. Em escrito anterior, já aludimos sumariamente a este acontecimento desenrolado no Jardim da Estrela e ao motivo de recolha de fundos para manutenção da Obra Salesiana. (3) Os títulos da imprensa escrita respigados na Crónica da Casa são: Correio da Noite, O Mundo, A Republica, Portugal e Floresta Negra.
Este confronto escrito comportou artigos com títulos apelativos: “A tolerância republicana”, “A verdadeira noção de liberdade”, “Parvoíces más – prevenindo os incautos” e “Officinas de S. José e o «Mundo»”.
Para cobrir a já referida falta de valores monetários para as realizações pensadas, tendo em vista o apoio aos rapazes mais necessitados, realizou-se, no Jardim da Estrela, um bazar a favor da Obra Salesiana. Na Crónica da Casa, no dia 10 de junho de 1909, escreveu-se: “Oggi nel jiardino «da Estrella» si apre un bazar in favore delle nostre «Officinas»”. (4)
O reflexo desta constatação surge no jornal Correio da Noite, de15 de junho, em defesa da Obra Salesiana, sob o título “A tolerância republicana”. Nele se lê: “Já nos anos anteriores, as Officinas de S. José teem obtido, por egual meio, alguns recursos para a obra de filantropia a que se consagram, sem que esse facto tivesse provocado o mais leve reparo a ninguém”.
Própria do jornalismo de então, o jornal anterior insurgia-se com a nota destacada no Mundo, fazendo reflexo da notícia publicada na Republica: “A Republica notava hontem, com carradas de razão, a audácia dos jesuítas, abrindo barraquinha de sortes, no Jardim da Estrella. (…) Os incautos que se acautelem, pois não deixando os magros cobres na famosa barraquinha, cujo total irá engrandecer os cofres da Companhia de Jesus”.
Estamos, conforme amplamente demonstrado, perante tempos efervescentes do final da Monarquia em Portugal e a existência de um forte espírito anticlerical, revelando algum desconhecimento da realidade e ferozmente particularizado no espirito antijesuíta. Essas posições encontram resposta no Correio da Noite de 16 de junho. “Que grandes pândegos!…”, e no Portugal de 17 de junho, “Não saberá aquella gente do Mundo, que são ordens diferentes?”
O Portugal de 17 de junho introduz o artigo “Parvoíces más” com sugestiva introdução: “O Mundo, que além de mau é parvo, inseriu no seu número de ante-hontem (…)”. Ainda sobre a Obra Salesiana e a sua ação, O Portugal discorre: “Elles, os bons padres Salesianos arrancam aos tremedaes do vício, infelizes rapazes, prestes a precipitarem-se n’esse declive escorregadio que conduz ao presidio, em que outros figurões vivem ou viveram do dinheiro que veiu dos lupanares”.
O mesmo Portugal, a 22 de junho, ainda respondendo a uma afirmação contrária à realização da barraquinha no Jardim da Estrela, do Floresta Negra, deixou um brevíssimo testemunho do êxito desta iniciativa referente ao bazar naquele lugar lúdico da cidade de Lisboa. Diz assim: “De todas as barracas que ahi existem, notamos ante-hontem com indizível jubilo que a referida barraca foi a mais concorrida e vimos comprar sortes alguns dos 400 homens honrados, eleitores da 2ª assembleia da freguezia de Santa Izabel”. Subjacente encontra-se a crítica mordente e o salientado aceno ao movimento social e político do início do século XX.
No dia 12 de julho, na Crónica da Casa, inscreveu-se, além de outras quantias, o cômputo da verba obtida da barraca do Jardim da Estrela, sendo o produto final de 525,830 reis.
__________________________________________________________________________
- Anjos, Amador, Oficinas de S. José – os Salesianos em Lisboa, Lisboa, 1999.
- O Pe. Agostinho Colussi foi Diretor das OSJ entre 1906/1908 e 1920/1923. No período de redação desta Crónica o Diretor das OSJ foi o Pe. José Maria Coelho.
- No documento elencam-se ainda nomes e contributos de diferentes personalidades beneméritas coevas.
- As citações contidas neste artigo foram retiradas da Cronaca della Casa – Officinas de S. José – 1909.