Está a guiar o seu automóvel e de repente ele pára. Em último caso, terá de chamar um mecânico. Mas o que nos interessa é saber como funcionaria o seu senso comum. O que faria com as mãos e o cérebro? Que pensamentos orientariam as suas mãos? Descreva o seu raciocínio numa folha de papel.
E. Chegou a hora de examinar os resultados do seu trabalho. Vamos começar com o problema do automóvel.
E.1 Se uma pessoa não sabe coisa alguma, só lhe resta chorar e esperar que alguém pare para ajudá-la. Se não for esse o caso, porém, ela poderá ter a ideia de abrir a tampa do motor, ver se há algum fio solto, dar algumas batidinhas nas peças. Esse comportamento revela muita coisa. A pessoa sabe que o motor funciona porque há canos por onde circula a gasolina, canos que podem ficar entupidos. Caso contrário, as suas batidinhas não teriam razão de ser. Ela sabe também que a eletricidade tem de fluir, que isso não ocorre quando fios estão desligados ou arrebentados. Essa pessoa age dessa forma porque dispõe de um modelo do motor, muito embora extremamente rudimentar e impreciso. E seu modelo é formado por canos por onde a gasolina deve fluir e que eventualmente ficam entupidos, e fios por onde a eletricidade deve passar e que são acidentalmente desligados. Assim, quando busca fios soltos e dá suas batidinhas no motor, ela está agindo de forma inteligente, a partir do modelo de que dispõe. E se um bruxo estivesse dirigindo o carro? Que faria ele? Provavelmente procuraria o responsável pela feitiçaria. Seu modelo para o funcionamento do motor seria outro.
E.2 Note algo muito curioso. O defeito é que faz a gente pensar. Se o carro não tivesse parado, você teria continuado sua viagem calmamente, ouvindo música, sem sequer pensar que automóveis têm motores. O que não é problemático não é pensado. Você nem sabe que tem fígado até o momento em que ele funciona mal. Nem sabe que tem coração, até que ele dá umas batidas diferentes. Você nem toma consciência do sapato, até que uma pedrinha entra lá dentro. Quando está escrevendo, você se esquece da ponta do lápis até que ela quebra. Você não sabe que tem olhos – o que significa que vão muito bem. Você toma consciência deles quando começam a funcionar mal. Da mesma forma que você não toma consciência do ar que respira, até que ele começa a cheirar mal… Fernando Pessoa diz que “pensamento é doença dos olhos”. É verdade, mas nem toda. O mais certo seria “pensamento é doença do corpo”.
A gente pensa porque as coisas não vão bem – alguma coisa incomoda. Quando tudo vai bem, a gente não pensa, mas simplesmente goza e usufrui…
E.3 Todo pensamento começa com um problema.
Quem não é capaz de perceber e formular problemas com clareza não pode fazer ciência.
Não é curioso que nossos processos de ensino de ciência se concentrem mais na capacidade do aluno para responder? Você já viu alguma prova ou exame em que o professor pedisse que o aluno formulasse o problema? O que se testa nos exames, e o que os cursinhos ensinam, não é simplesmente a capacidade para dar respostas? Frequentemente fracassamos no ensino da ciência porque apresentamos soluções perfeitas para problemas que nunca chegaram a ser formulados e compreendidos pelo aluno.
E.4 Qual é o problema?
O carro parou. Você deve descobrir o que está errado. Mas o que é isso?
Você sabe que o automóvel, tal como foi planejado, é uma máquina ideal que funciona perfeitamente. Antes de ser transformada em peças, engrenagens, tubos, parafusos, ela foi construí da idealmente, na imaginação, por pessoas que foram capazes de simular o real. Esta é a grande função e o poder mágico do pensamento: ele pode simular o real, antes que as coisas aconteçam. Mas nesse modelo ideal do automóvel não há defeitos. Eles aparecem quando a máquina real se desvia do plano ideal. Ora, seu problema é fazer com que o carro ande novamente, isto é, fazer com que funcione conforme foi idealmente planejado. Isso significa que você só pode resolver seu problema se for capaz de reconstruir, idealmente, o plano da máquina. A partir desse modelo você poderá inspecionar, mentalmente, os possíveis defeitos no funcionamento do automóvel.
Rubem Alves | Filosofia da Ciência