| E eu escutei |

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| E eu escutei |Mergulhado na multidão, ouvia um timbre ritmado que variava consoante o calçado e a calçada. Eram passos que ao passar pisavam e ao pisar falavam. Cruzei-me com rostos embriagados de mil coisas, perdidos em coisa nenhuma; conduzi-me pela direita para evitar sacos, cotovelos, choques inesperados, cigarros descuidados entre dedos esquecidos; gente que resmunga para todos e ninguém; uma canção perdida que chega em novelos empurrada pelo vento; um pedinte que pede e que podia não pedir; o som da moeda quando cai e bate nas outras que respondem por simpatia ou incómodo; a fuga, e a velha porta da igreja que, entreaberta, me convida a entrar.

Devagarinho, saboreando uma mistura de silêncio fresco e penumbra, deslizei com a mão quente no banco que a foi refrescando… e sentei-me. Que bom! Sem ninguém por perto, olhei para o alto como quem vê tudo e nada, e abri o coração para receber o nada e o tudo. O corpo foi ficando mais leve e aconchegou-se no conforto da madeira polida de um banco que, se falasse, teria tanto para contar! Lá muito à frente, um vulto escuro ajoelhou-se, deixou cair a cabeça e demorou um tempo que, ali dentro, não existia. Como quem pede licença a si próprio para se levantar, serenamente reconfortado, o vulto percorreu as longas pedras num silêncio apenas beliscado pelo toque de uma bengala que parecia conduzir o seu dono. Saiu.

Jorraram pensamentos dispersos, atropelando-se uns aos outros, porque ali havia lugar para todos eles. E eu deixei. De olhos abertos a ver nada, de olhos fechados a ver tudo, esperei. Esperei. Esperei ainda um pouco mais, como quem marcou encontro com alguém que nunca falta.

O sino tocou duas vezes. Em silêncio, sentou-se ao meu lado o silêncio que costuma falar. E eu escutei.

José Morais I Director Pedagógico