Linhas convergentes ________________________________________________________ Por Frederico Pimenta Releitura dos documentos originais da história dos Salesianos em Portugal. Trabalho ímpar de tantos investigadores, com especial destaque para o Pe. Amador Anjos, historiador, conhecedor profundo e inspirador de dissertações e teses sobre a vida e obra dos Salesianos em Portugal. Semide – subsídios para o estudo de nove anos de trabalho e incertezas Os Salesianos receberam o desafio feito pela Junta Provincial da Beira Litoral para a dinamização de uma Escola Agrícola em Semide, existente desde 1929. As instalações ocupavam alguns espaços reconstruídos de um antigo convento feminino da Ordem Beneditina criado em 1183. Ponderadas as diferentes situações, o solicitado foi anuído no ano de 1938. (1) A ligação dos Salesianos a este projeto persistiu durante nove anos. O Arquivo Histórico, Pe. Amador Anjos, da Província Portuguesa da Sociedade Salesiana detém parca, mas rica em conteúdo, informação sobre estes momentos da presença salesiana. Digno de realce surge o manuscrito “Crónica Semide”, (2) anteriormente observado por outros autores, no qual, ao longo de quase uma década, se anotou o quotidiano da instituição. Sobre ele, hoje, nos debruçaremos de forma obrigatoriamente sintética. O relato elencado sob o título “Crónica Semide” inicia-se, afirmando que “No dia 4 de Outubro de 1938 os Salesianos tomaram posse da direcção e administração da Escola Profissional Agrícola de Semide”. O grupo inicial foi composto pelo Pe. José da Silva Lucas, Diretor; Pe. José Rodrigues Pereira, Conselheiro agrícola; Clérigo Heitor Calovi, Assistente; Clérigo João Patrão, Assistente e Professor; Coadjutor António do Nascimento Geraldo, Agricultor; Coadjutor Matias Lourenço, Despenseiro e o Noviço Joaquim Ramos Rosa. A presença salesiana efetiva-se numa casa em remodelações e habitada por 35 alunos e 34 idosos que aqui tinham o seu lar. O número de alunos aumentou, e logo no dia 7 de outubro, com o início do ano letivo, perfazendo 59 jovens. Ainda neste mês, o Pe. Humberto Pasquale, da casa salesiana de Mogofores, visitou o novo ambiente. A primeira festa, algo que não era habitual na Escola Agrícola antecedente, teve lugar no dia 1 de novembro no “Passeio das Castanhas”, onde “foi-lhes distribuído castanhas e vinho que encheu de alegria a rapaziada, que não estava acostumada a êste mimo”. No ano seguinte, este passeio não se realizou devido ao mau tempo. A primeira visita do inspetor das casas salesianas em Portugal, o Pe. Hermenegildo Carrá, aconteceu no dia 8 de novembro e “Mostrou-se satisfeito com os resultados alcançados com os alunos no pouco tempo da nossa estada nesta casa…”. Estes efeitos estão inclusive patentes nos resultados obtidos, ao longo dos anos, nos exames oficiais a que os alunos eram sujeitos e, por regra, eram aprovados. A inauguração da capela deu-se no dia 24 de dezembro, “Á meia noite”. Ainda nessa noite, os alunos foram surpreendidos com “…camisolas, meias, jogos, rebuçados, chocolates, etc…”. Curiosa, ainda neste dia 24 de dezembro, a referência ao Pe. Pedro Vicente da Silva Morais pelo facto de ter idealizado e construído, o que provava os dotes exímios que possuía, um harmónium que enviou para Semide. A sua presença em Semide seria tangível no ano seguinte, sendo que em junho se submeteu, na cidade de Coimbra, a uma intervenção cirúrgica da responsabilidade do Dr. Bissaya Barreto. O Pe. Morais encontrava-se em Évora, onde a presença salesiana se fazia sentir desde 1926, e só regressou a essa cidade alentejana no mês de outubro. Em convalescença esteve igualmente o irmão Guido Sanguinetti no final do ano de 1939 e início do ano de 1940. Já no ano de 1939 celebrou-se no espaço da Escola Agrícola, agora orientado pelos Salesianos, a primeira festa dedicada a S. João Bosco. Além das respetivas Eucaristias e bênção do SSmo., realizaram-se ainda um almoço com identidades adjuntas à Junta Provincial da Beira Litoral e um momento de diversão. Neste mesmo ano, acercaram-se mais 12 alunos provenientes das instituições Ninho dos Pequenitos , criada nos anos de 1930, e Preventório de Penacova , inaugurado em 1933. Em 7 de agosto de 1941, chegariam dez alunos. Ambas as instituições, a par da Escola Agrícola, remetem-nos para a figura do Dr. Bissaya Barreto e as preocupações com o bem-estar das crianças e dos cuidados de saúde. A este facto não são alheias a localização destas instituições em pleno ambiente rural e a sua indicação para tratamento da tuberculose existente com bastante predomínio nessa época. Da mesma forma, este ambiente repousante era apreciado pelos alunos de filosofia da casa salesiana do Estoril, que usufruíram de cinco semanas dessa envolvência. No mês de maio desse ano de 1939, os alunos realizaram o seu passeio anual a Mogofores e aí, na Festa de Maria Auxiliadora, tomou parte a banda da escola emparceirada na procissão realizada nessa localidade. A participação e exemplar comportamento dos alunos de Semide foram aclamados. Pela postura demonstrada, esta associação musical foi requisitada amiúde nos arredores e lugares mais afastados da Escola Agrícola como, por exemplo, no Sanatório da Colónia Portuguesa do Brasil, na procissão do Corpo de Deus, em 11 de junho de 1939, sendo esta mais uma instituição agregada ao nome do Dr. Bissaya Barreto. Ainda se destaca a comparência da associação musical na Misericórdia da Lousã, onde deu um concerto. A satisfação com esta postura musical desenvolveu-se ao longo da presença dos Salesianos em Semide. A meio do ano de 1939 realizou-se uma alteração do corpo salesiano da Escola Agrícola devido à retirada do Pe. José Rodrigues, substituído pelo Pe. Filipe Pereira para o mesmo cargo. O ano letivo iniciado no dia 6 de outubro comportou 75 alunos. A visita anual do Pe. Inspetor, Hermenegildo Carrá, realizou-se em 20 de novembro, “demorando-se dois dias”. No capítulo das visitas, neste final de ano, destaca-se a realizada pelas enfermeiras visitadoras de Lisboa e Coimbra às instalações da Escola Agrícola, sendo que elas “Ficaram muito satisfeitas”. Como no primeiro Natal passado na Escola Agrícola, também neste e nos seguintes os Salesianos procuraram “alegrá-lo”: uma “arvore de Natal cheia de luzes e laranjas e tangerinas atraia as vistas dos pequenos”. e no refeitório estes tiveram “uma chávena de cacau, broas e filhozes”. O início de ano de 1940 trouxe também o começo do espaço salesiano do Oratório Festivo com 42 crianças. O espírito salesiano desenvolvia-se naturalmente na Escola Agrícola. A importante deslocação a Portugal do Pe. Berrutti e do Pe. Ziggiotti, que marcou de forma indelével as presenças salesianas em Portugal, chegou naturalmente a Semide. O Pe. Ziggiotti esteve na Escola Agrícola de Semide no dia 2 de abril de 1940, “visitou a casa e falou com alguns irmãos mostrando-se muito satisfeito com tudo o que viu”. Teve ainda tempo de apreciar uma estátua de S. João Bosco talhada em Braga e colocada na capela da Escola. A festa de S. José decorreu no dia 14 de abril e mereceu notícia no Diário de Coimbra de 20 de abril de 1940. No mês de junho, a Escola participou no denominado Certame Catequístico, nas Oficinas de S. José de Lisboa, e obteve o primeiro lugar. A chegada deste prémio e do aluno vencedor foi muito festejada, “estralejaram foguetes e as palmas batiam quentes de entusiasmo”. A visita da inspetoria iniciou-se com a presença do Pe. Hermenegildo Carrá, no dia 24 de junho, deixando palavras de extrema importância: “falou com todos os salesianos e fez-lhes também uma conferência, incitando-os a proseguir no trabalho em prol da juventude, pondo em prática o sistema preventivo”. O Pe. Hermenegildo Carrá voltaria em visita no mês de novembro, demorando-se desde 28 de novembro a 2 de dezembro. O passeio anual decorreu na Escola de Regentes Agrícolas, em Bencanta. (3) Este contacto com as modernas práticas de agricultura de então ficou provado com esta inserção no meio envolvente e a preocupação com uma correta formação. A deslocação de Coimbra até ao local fez-se na companhia da banda de música. Aliás, no âmbito da formação, a casa de Semide foi reforçada pela presença de dois clérigos, Porfírio e Américo, desde 27 de setembro desse ano de 1940. Outras alterações do pessoal salesiano se registaram. O final deste ano trouxe ainda “o material tipográfico para a instalação da Oficina de Tipografia. Foi cedida ao Sr. Presidente da Junta pelo govêrno a Tipografia Popular da Figueira da Foz que tinha sido apreendida”. Uma peça desta máquina tombaria sobre alguns alunos provocando uma perna partida. O Natal trouxe a novidade da atividade conjunta dos alunos da Escola e os 40 do Oratório Festivo. O ano de 1941 decorreu com a normalidade recorrente destes ambientes. Destacam-se as visitas do Pe. Inspetor nos dias 28 de junho e 4 de dezembro. Em 22 de agosto, realizou-se mais uma visita, desta vez do Subsecretário da Assistência, acompanhado pelo Secretário e ainda pelo Dr. Bissaya Barreto e pelo Dr. Miranda de Vasconcelos, respetivamente Presidente e Vice-presidente da Junta da Beira Litoral. O Diretor da Escola agrícola “…explicou-lhes o método que seguem os salesianos na educação da juventude…”. Em setembro, deixaram Semide o Pe. Filipe Pereira, com destino ao Oratório de Évora, sendo substituído pelo Padre Agostinho Sabas, e o Coadjutor Matias Lourenço, para as missões de Timor. O ano de 1942, no mês de abril, assiste à partida do Diretor, Pe. José Lucas, na companhia do Pe. Francisco Leite Pereira, para a Madeira, a fim de verificarem a possibilidade da criação de uma nova presença salesiana agora naquela ilha, o que se verificou em 1950, regressando no dia 19 de maio a Semide. Uma vez mais, os alunos da Escola brilharam no Certame Catequístico desse ano, tendo um deles ganhado 100 escudos. De 11 a 16 de junho, realizou-se a visita do Pe. Hermenegildo Carrá, na sua deslocação como Inspetor das casas salesianas. A sequência habitual decorreu no ano de 1943. Destaque, além das normais, para a celebração das bodas de ouro do Superior Geral, Pe. Ricaldone. Neste ano, precisamente no dia 16 de setembro, deu-se a substituição, além de outras, do Pe. José da Silva Lucas pelo Pe. José Bernardino Rodrigues como Diretor da Escola Agrícola de Semide, cargo que ocupará até 12 de outubro de 1946. A visita do Pe. inspetor realizou-se entre os dias 20 e 24 de dezembro. No ano de 1944, a festa de D. Bosco trouxe à Escola as crianças da Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, visita que, pelos registos, foi retribuída no dia 1 de dezembro de 1946. A visita da inspetoria iniciou-se no dia 1 de julho, prolongando-se por três dias. A casa de Semide sentiu nova mudança no pessoal salesiano a ela adstrito. A Crónica apresenta escassa informação neste período. 1945 surge igualmente parco de informação. Destaca-se a visita do Pe. Inspetor, no dia 11 de maio. Em 1946, o Diretor da Escola Agrícola de Semide passa a ser o Pe. Manuel Geraldo Gonçalves. No dia 12 de outubro, numa entrevista tida com o Dr. Bissaya Barreto, foram analisados os métodos educativos existentes e a diferença sentida com a aplicação do sistema preventivo seguido pelos salesianos. Reuniram-se novamente no dia 4 de novembro para assuntos relacionados com a escola. Neste ano, na Escola, surge falta de azeite e evidencia-se “atrapalhação do Diretor” para solucionar este problema. O Natal continuou a ser vivido de forma muito alegre por todos. No dia 1 de janeiro de 1947, reavivam-se os problemas com os produtos alimentícios, nomeadamente o pão, o azeite e a farinha. Anotou-se a falta de resolução destes assuntos por parte da Junta de Província, prevendo-se, naquela altura, a ausência de pão até dia 17 do primeiro mês do ano. Esta situação relata-se mais intensa no dia 4 de janeiro com a manifesta falta de pão. Desde essa data, surge no manuscrito, datado de 6 de agosto de 1947, redigido pelo punho do Pe. Manuel Geraldo Gonçalves, em Mogofores, a redação das movimentações inerentes ao término da colaboração dos Salesianos em Semide. Elenca-se o motivo principal de tal conclusão, evocando-se a falta de apoio por parte da “Junta de Província” e o envolvimento de personalidades que contribuíram para esta situação. Estes escritos foram enviados ao Pe. Inspetor que os remeteu para a Junta. Uma reunião teve lugar com o Diretor da casa de Semide e o Dr. Bissaya Barreto, no dia 28 de julho, para acerto da organização e pormenores do encerramento. A difícil despedida aos alunos fez-se no dia 30 de julho, procedendo-se a entrega das instalações às entidades devidas no dia 31. “Toda a gente da terra sentiu a saída dos Salesianos da Escola.” __________________________________________________________________________ (1) O Boletim Salesiano , órgão dos cooperadores salesianos, Ano XXXVI, N.º 2, Março/Abril, 1939, apresenta as datas de junho de 1937 para a proposta de direção e orientação da escola e a tomada de posse a 4 de outubro desse mesmo ano. (2) Todas as citações constantes neste texto provêm deste manuscrito. (3) Assim chamada desde 1931. Anteriormente, denominava-se Escola Nacional de Agricultura.