| O Piano da Sala 1 |

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| O Piano da Sala 1 |

Sou um robusto piano vertical, em preto polido, e tenho a particularidade de acompanhar a vida do Musicentro desde os seus primeiros passos. Já existiam algumas aulas de instrumento nas Oficinas de S. José, a escola salesiana em Lisboa, bem na linha do espírito de D. Bosco, quando a concretização do projeto de uma escola de música, aberta também ao exterior, trouxe novas instalações e mais professores. 

Sendo de uma conceituada marca, eu era o orgulho da classe de piano e o escolhido para as audições e apresentações do Prémio Revelação Musical instituído nesses primeiros anos. Como gostava de estar ao lado de violinos, violetas, violoncelos, saxofones, flautas, clarinetes, pianos elétricos, guitarras, baixos, baterias, até do acordeão, guitarra portuguesa, para além de cantores… Não importava quem ganhava o 1.º e o 2.º prémio, éramos uma família e a alegria de todos! 

Com o crescimento da escola, construiu-se um novo auditório que foi dotado com um piano de cauda. Como fiquei agradecido por deixar de ser transportado e não precisar de tantas afinações! Sinto-me sempre desconfortável quando sou exposto e me esticam as cordas uma a uma até ao equilíbrio perfeito…. Prefiro a frequência com que delicadamente me tiram o pó, deixando na sala um agradável perfume. 

Mas do que eu gosto mesmo é do início de um novo ano letivo. A porta abre-se e entram os alunos, tão pequenos por vezes que, quando se sentam no banco para me experimentarem, ficam com as perninhas a baloiçar. Uns são afoitos e destemidos, martelando com energia no seu tão desejado instrumento. Outros tão tímidos ou receosos do meu tamanho que só encostam os dedinhos às teclas. Que alegria quando finalmente conseguem tirar um som! 

É o começo de uma verdadeira amizade. Com alguns, passeiam por mim passarinhos, gatos, ursos e outros animais até conhecerem bem as minhas teclas brancas e pretas; outros já dizem com orgulho o nome das notas musicais e reconhecem-nas no meu teclado; e alguns até sabem ler a pauta, como um menino que, estando em dia do contra e após alguma resistência ao trabalho, tocou com um sorriso maroto a música, começando na última nota até à primeira. E, tendo a professora elogiado o feito, tocou triunfante a peça do princípio ao fim.

Os mais crescidos trazem sonhos: uns só querem tocar as canções das suas bandas preferidas, outros os compositores clássicos e alguns aventuram-se pelo jazz. Não importa, desde que nos seus dedos ágeis venham sentimentos e façamos música. Chegam também adultos ansiosos por concretizar aspirações há muito adiadas; pais que querem aprender ou relembrar para acompanharem os filhos; quem perdeu alguém que amava e vem procurar em mim recordações felizes; e também antigos alunos que esporadicamente me visitam. Parece que nunca se foram embora, mas as músicas que comigo partilham trazem muitos caminhos entretanto percorridos.

Os outros professores de piano também aqui vêm. Em breves ou mais longas conversas, combinam-se atividades, trocam-se experiências, esclarecem-se dúvidas, partilham-se alegrias e tristezas. Por vezes, levam e deixam um brilhozinho no olhar, mas, quando entra um novo aluno, já lá está um sorriso a recebê-lo.

A luz apaga-se geralmente tarde nesta sala. Quando a claridade da manhã entra generosamente pelas janelas, é sinal de que a professora está a chegar. Vai ajeitar o banco, levantar a tampa, deixar-me pronto para um novo dia que para mim é sempre o primeiro. Para ela também, mas eu sei que guarda todos os outros no seu coração.

Margarida Pimenta | professora de Piano