Mafalda Veiga
Ainda me lembro de ser criança e os meus pais nos chamarem para vermos slides das férias, ou filmes, projectados num ecrã ou na parede, de quando éramos ainda mais pequenos, na praia, numa festa qualquer, no acaso de um dia filmado por motivo nenhum. Era um “programa” familiar e era sempre emocionante o ritual de ver o meu pai ocupado a ligar aquelas máquinas com vida e alma próprias, que as aplicações de todos os iphones e ipads tentam imitar, a procurar as pequenas bobines que uns rabiscos (nessa altura indecifráveis) identificavam com títulos e datas, e a mandar-nos pôr a sala às escuras e sentar quietos no sofá ao lado da mãe ou em almofadas, no chão, sem fazer barulho.
A parte de não fazer barulho durava pouco porque as imagens nos faziam reagir com risos ou comentários a toda a hora, mas durava o suficiente para me lembrar do efeito mágico que o som do projector a funcionar instalava e espalhava no silêncio, como se fosse o som do próprio tempo, hipnótico, o som da memória a vir do passado e a levar-nos para esse outro lugar de onde já só saíamos quando o filme acabava e era rebobinado e a ponta da fita ficava solta, a rodar e a estalar na bobine a cada volta, até o meu pai parar o projector e abrir-se a janela para a luz do dia.
Tudo isto para dizer que a “história” de quase tudo agora ser tão digital, virtual, impalpável, estar guardado numa fatia de “coisa” portátil que, diz-se, “tem lá dentro as nossas vidas”, faz com que muitas vezes só o pretexto de organizar o computador (empreitada sem fim à vista, no meu caso…) nos faça recuperar, casualmente e aos bocadinhos, o melhor do que se viveu, nesses momentos furtivos roubados à pressa da vida para “arrumá-la” antes que o disco rebente…
Já não há quase nenhum ritual colectivo para revivermos a memória mais afectiva que guardamos e isso torna alguma coisa muito mais vazia.
Foi num desses dias apressados, nesse fundo sem fim do computador, que redescobri o primeiro filme que fiz da primeira audição do meu filho na escola de música dos Salesianos, já há seis ou sete anos, minúsculo atrás da bateria, a tocar com outro aluno um bocadinho mais velho e com a ajuda, no baixo eléctrico, de um professor. Com o prazer de rever o filme voltei a descobrir e a lembrar todas as boas razões que me levaram a inscrevê-lo nesta escola: a relação tão próxima e descontraída entre alunos e professores (quase todos músicos profissionais e meus colegas e parceiros) e a forma autêntica, entusiástica e quotidiana como transportam para o ensino a afectividade e a dimensão que a música tem nas suas vidas.
Nas aulas, a que assisti muitas vezes, vive-se uma cumplicidade parecida com aquela vivida na “estrada” (termo que usamos para nos referirmos aos espectáculos que as bandas fazem quando estão em digressão pelo país), trocam-se piadas típicas entre músicos e é muito comum que outro professor entre numa aula e faça um comentário divertido de incentivo, uma crítica construtiva, ou chame aquele aluno a colaborar com outros, que estão na sala ao lado, para ensaiarem juntos um tema que estejam a preparar para uma audição. A música é tratada com paixão e aquilo que se lhes pede é a sério, por muita brincadeira que se faça, é uma atitude e um envolvimento que eu acho que nunca irão esquecer.
Tudo isto (mais uma vez) para dizer que esta “história” de quase tudo agora ser tão digital e impalpável, tanta coisa quase “não vivida” na incorporalidade das amizades que virtualmente partilhamos em frente de um computador, faz com que seja ainda maior o privilégio do ambiente que se vive numa escola de música como esta, um privilégio para o presente e para o futuro. E não sei se o meu filho vai ser um dia um músico profissional, como tantos outros alunos que lá estudaram ( um deles toca comigo há muito tempo e é um grande, grande músico), mas sei que vai de certeza recordar e guardar os momentos passados
nesta escola da mesma maneira que eu me lembro dos melhores momentos que vivi: com a dimensão inteira do que é humano e autêntico.
Vai recordar as conversas com o Vasco depois das aulas, o tom inimitável das piadas do Néné, as correrias e nervosismo das audições feitas com a responsabilidade do palco e do público, a cumplicidade boa dos olhares que trocam quando corre bem ou quando é preciso ânimo e ajuda para superar um erro, os clássicos de jazz e de blues que, desde muito pequenos, os desafiam a aprender a tocar e (porque ele estuda bateria) talvez também se vá lembrar e rir de cada anedota que os outros músicos contam invariavelmente sobre os bateristas e que os seus professores, igualmente visados, o ensinaram a ouvir com o sorriso complacente de quem sabe que afinal, no fim, (diz a “lenda”), a miúda mais gira os vai escolher.
Mafalda Veiga
Lisboa, Outubro de 2013