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seara-19-2017-18_04“Fundir disciplinas, acabar com os testes, apostar em projetos interdisciplinares são algumas possibilidades deste modelo. O desafio é pensar a escola de uma outra forma.”

Ariana Cosme e Rui Trindade, professores doutorados da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, são dois dos sete consultores com funções de assessoria do Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular. O projeto-piloto avançou este ano letivo em 230 agrupamentos que representam cerca de 800 escolas, 45 mil alunos e 6 mil professores. As escolas que aderiram podem gerir 25% da carga letiva semanal da forma que quiserem, desde que cumpram programas e metas curriculares. Mas abrem-se novas possibilidades.

Esta nova organização curricular está no início e a ideia é que se generalize a todo o país. Para Ariana Cosme, não é possível continuar tudo como está. “Os alunos não querem estar na sala de aula, os professores não estão felizes em tentar mantê-los presos à sala de aula, temos disciplinas atomizadas, repetem-se coisas em disciplinas diferentes”, diz. O desafio é questionar práticas, ter ferramentas pedagógicas mais ativas, envolver os alunos nos processos de decisão, perceber se os testes fazem ou não sentido na avaliação, juntar disciplinas. “O projeto é interessante porque não há uma forma para o país, há todas as formas que os 230 agrupamentos quiserem, só precisam de garantir que os alunos aprendem mais e melhor e naturalmente que os programas sejam cumpridos”, refere.

Para Rui Trindade, o projeto permite outras possibilidades de fazer as coisas e romper com ideias feitas. “É urgente mas não pode ser feito à pressa”. “A escola não pode continuar como uma coisa à parte dos alunos”, afirma. A ação docente tem de ser questionada para perceber o que se ensina e como se ensina. “O que é interessante é que o Ministério da Educação, pela primeira vez, não impõe o que as escolas devem fazer, oferece-lhes um conjunto de possibilidades e as escolas, dentro desse conjunto, vão tomar opções”, sublinha.

EDUCARE: Quais são, no fundo, as principais alterações que as escolas vão sentir com o Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular? O sistema estará preparado para essas mudanças?
Ariana Cosme (AC):
Como o nome sugere, é ter maior liberdade, maior responsabilidade, em tomar decisões no desenho curricular. As pessoas foram desafiadas a pensar de outra forma a escola, muito a partir desta ideia que é clara para todos: as coisas não podem continuar como estão. Os alunos não querem estar na sala de aula, os professores não estão felizes em tentar mantê-los presos à sala de aula, temos disciplinas atomizadas, repetem-se coisas em disciplinas diferentes.

E: Essa é, aliás, uma das alterações, tentar não repetir matéria em várias disciplinas.
AC:
E em vários anos de escolaridade, a mesma matéria no 6.º, no 7.º, no 8.º ano, às vezes de forma pouco interligada. Professores que conhecem mal os conteúdos que os outros professores trabalham. Apesar da unidade dos conselhos de turma no 2.º, 3.º Ciclo e Secundário, os professores sabem pouco o que os outros fazem e os alunos não veem depois significado real das coisas que aprendem em cada disciplina.

E: Esta flexibilidade curricular vem, de alguma forma, ao encontro do que os alunos querem, das suas expectativas e necessidades?
AC:
Das expectativas não sei, das necessidades sim. Os alunos precisam que a escola mude, que se torne mais interessante, mais desafiante.

Rui Trindade (RT): E que possam ser objeto de reflexão, porque o problema é que as pessoas, muitas vezes, funcionam basicamente em torno dos manuais da sua disciplina. No momento em que é preciso pensar as coisas do ponto de vista interdisciplinar, das questões da contextualização, espera-se que os alunos sejam tidos em conta. Espera-se que também possam ter alguma margem de manobra.

Não se trata propriamente daquela conversa de responder às necessidades e interesses dos meninos, porque, muitas vezes, a necessidade é criar outros interesses e outras necessidades, mas é preciso ter em linha de conta aquilo que eles são, aquilo que eles sabem, e também aquilo que se espera que eles possam vir a ser.

E: Mas, na prática, como é que os alunos são chamados a participar?
AC:
Com metodologias de trabalho mais dinâmicas, prever a participação dos alunos desde a planificação à gestão. Vinte e cinco por cento da carga horária semanal – e esta é a grande flexibilidade que é dada às escolas que estão no projeto-piloto – pode ser pensada de outra forma. O projeto é interessante porque não há uma forma para o país, há todas as formas que os 230 agrupamentos quiserem, só precisam de garantir que os alunos aprendem mais e melhor e naturalmente que os programas sejam cumpridos, que as aprendizagens essenciais definidas em julho sejam respeitadas, e sobretudo que seja atingido o perfil terminal de aluno que foi definido.  

Estamos, na verdade, num momento em que estão a ganhar sentido uma série de documentos orientadores para uma nova política educativa, sempre num projeto de escola mais democrática, onde se aprenda mais, onde se aprenda melhor, onde os alunos possam ser chamados a participar mais no seu processo. É muito isto. Este projeto de autonomia é uma das ferramentas.

Duzentos e trinta agrupamentos têm 25% de liberdade. Ao lado deste, há um outro projeto que se chama Projeto Piloto de Inovação Pedagógica (PPIP). Há seis PPIP, há seis agrupamentos que têm 100% de liberdade, mais a Escola da Ponte, que já tem liberdade há muitos anos e que já tinha construído o seu próprio projeto.

RT: Mas é uma liberdade balizada, porque as matrizes curriculares continuam a ser as mesmas.

E: E os tempos e os programas curriculares não podem ser alterados?
AC:
Os tempos e os programas não podem ser alterados, mas sim a forma como os tempos podem ser geridos. Há seis PPIP, uma experiência pedagógica que já começou no ano passado, que têm 100% de autonomia ao nível curricular. Podem desenhar, até funcionar por semestre em vez de trimestre, organizar os professores de outra maneira. Têm total liberdade, os outros 230 não, só têm 25% da carga letiva, o equivalente à carga letiva semanal. No final do ano, podem usar 25% das horas para trabalhar de outra maneira, de uma maneira que signifique melhor.

E: Isso significa que as escolas têm liberdade de criar novas disciplinas e acabar com outras?
AC:
Acabar com disciplinas não, mas fundir algumas em alguns momentos do trabalho, sim. Mas têm liberdade para criar outras ao nível da oferta de escola. Os 25% da carga horária semanal podem ser usados para desenhar uma oferta transdisciplinar, misturar Português com Geografia e História, passarem uma vez por semana a trabalhar juntas. Pega-se nas horas para costurar o que é possível costurar. Mas daí a dois ou três meses pode-se decidir que já não há nada para costurar e que tinha sentido que Matemática, Ciências e Educação Físico-Motora trabalhassem de forma mais articulada.

É um conceito novo, é o tal domínio de autonomia curricular, domínio de articulação curricular, onde se podem misturar disciplinas. Aos poucos, pode-se fundir disciplinas, os seis PPIP podem. A ideia é acabar com esta atomização. No 3.º Ciclo, os alunos têm 13 disciplinas, isto não tem sentido nenhum. Na vida, os saberes são encadeados.    

E: E o que se passa no resto da Europa?
AC:
O resto da Europa está mais ou menos organizado por disciplinas, mas penso que nenhum tem tantas como nós. Claro que países do Norte da Europa que são sempre chamados para dar exemplos, como a Finlândia, estão com experiências pedagógicas há alguns anos. A Dinamarca, a Noruega, já há muito tempo que trabalham por frentes, por áreas disciplinares.

E: Estamos a falar de anos iniciais de ciclo…
AC:
Que para o ano estarão no segundo ano da experiência.

E: O projeto vai então acompanhando os anos seguintes.
AC:
A ideia é que este projeto seja generalizado a todo o país. O secretário de Estado da Educação diz que há sempre liberdade das escolas que não quiserem a flexibilidade curricular, que querem ter autonomia zero, ficarem na mesma com o currículo espartilhado em 13 disciplinas.

E: Estamos a falar de escolas diferentes, portanto…
AC:
Elas já são diferentes, já têm projetos muito diferentes, só se vai clarificar a diferença. O privado tem balizas nacionais mas tem desenhos diferentes. No público, a Escola da Ponte é o melhor exemplo: rede nacional, obedece a todas as balizas nacionais, e acabou com as disciplinas há muitos anos, os professores são tutores dos alunos.    

E: Alguns diretores escolares já disseram que se tem de ter em conta a instabilidade do corpo docente. Professores que andam de um lado para o outro não conseguem acompanhar os alunos, acompanhar o projeto.
AC:
Apesar de tudo, a mobilidade docente é muito mais baixa relativamente à estabilidade. Estamos com problemas gravíssimos de excesso de estabilidade, estamos envelhecidíssimos, não há professores jovens no sistema há muitos anos. Entram muito tarde, com 30 e tal anos. Estamos com um problema de envelhecimento claro. Ao nível do 1.º Ciclo e do pré-escolar, a estabilidade é quase total. A estabilidade que se adivinha é enorme, até desejaríamos maior renovação.

Por outro lado, a partir do momento em que há uma dinâmica nacional, os professores estarão todos apropriados de ferramentas mais interessantes, sobretudo mais ativas. O desafio é, primeiro, respostas mais contextualizadas, não é ter um desenho nacional, mas cada escola poder fazer o desenho das suas necessidades, práticas e metodologias de trabalho dos professores cada vez mais ativas, colocando os seus alunos a fazer, a pensar, a discutir.

As aulas são os professores que as dão, os alunos estão quietos a ouvi-las, como os alunos não estão quietos não as ouvem. Não as ouvem, há uma tensão enorme. O problema é o modelo da escola. Os alunos não conseguem estar sentados, não conseguem ouvir o professor, a única hipótese é tê-los ativos em pé, de joelhos, sentados, a trabalhar, a trabalhar, a trabalhar. Quando estão a trabalhar, estão ocupadíssimos e as evidências demonstram que produzem coisas fantásticas, que consolidam aprendizagens de uma forma mais efetiva.

RT: As escolas não foram obrigadas, só alinharam neste projeto escolas que queriam. O que é interessante é que o Ministério da Educação, pela primeira vez, não impõe o que as escolas devem fazer, oferece-lhes um conjunto de possibilidades e as escolas, dentro desse conjunto, vão tomar opções.

AC: Há escolas que só estão a fazer 5.º, 7.º e 10.º anos. Há escolas que só estão a fazer 1.º e 5.º, há escolas que só estão a fazer algumas turmas do 5.º ano.

E: Tem muito a ver com as condições de cada escola?
AC:
Exatamente, se o corpo docente é mais estável, se está mais bem organizado, se tem gente mais disponível para usar ferramentas de metodologias ativas. Ou, pelo contrário, se tem muita gente presa à aula que se dá, ao teste que se faz. Este projeto não se faz contra os professores.

E: Os testes mantêm-se?
AC:
Só para quem quer. Os exames nacionais mantêm-se, os testes não.

RT: Mesmo hoje os professores não são obrigados a dar testes. A lei só obriga a ter exames no 9.º ano e no Secundário. Também é preciso pensar se a matriz das provas de aferição e dos exames se adequa não só a este projeto, mas ao perfil do aluno do século XXI. Se temos um perfil que depois não é para cumprir…

AC: Há professores que vão fazer uma mistura, vão dar alguns testes porque, apesar de tudo, se sentem confortáveis com algum instrumento de natureza sumativa – que achamos que não tem qualquer interesse, porque o instrumento que regula e determina a avaliação nacional em Portugal, a sua principal modalidade de avaliação, é formativo porque resulta da recolha contínua e sistemática de indicadores de sucesso e de dificuldades dos alunos, e os testes não fazem esta recolha sistemática, são sumativos. Temos consciência de que os alunos produzem muito pouco, a única coisa que precisam de produzir é, de dois em dois meses, um teste. E isto não pode ser.   

Nós também temos esperança de que isto ajude os professores a perceberem que há outros materiais, não de desempenho máximo, onde ficam mais claras as evidências do que o aluno efetivamente aprendeu ou não aprendeu. Interessa-nos muito o que o aluno não aprende, mas não é para o chumbar, é para que o professor e a escola possam definir trabalhos para o ensinar. Não podemos ter os alunos a saírem da escola sem saber.

RT: E sem saber o quê. Aquilo que um teste afere é se o aluno memoriza determinado tipo de informação. A memorização não garante que se saiba.  

AC: O Google tem tudo memorizado, não é preciso memorizar as coisas, é preciso aplicá-las bem. A ideia é que este projeto ajude a escola a pensar-se de outra maneira. Não era possível manter o estado das coisas. A escola é pouco produtiva, sendo para alguns meninos a única grande oportunidade da vida de contactarem com um património cultural fantástico, da Química, da Física, da Literatura, da Filosofia. Se é uma seca, se não toca nos alunos, a escola passou ao lado deles.

RT: Ou seja, os meninos que não aprendem continuam a ter dificuldades, porque aquilo é uma coisa que lhes é estranha, mas também aqueles que aprendem, que são bons alunos, não aprendem tanto quanto poderiam aprender.

Como é que um professor não está habituado a escrever? Como é que um professor não está habituado a analisar criticamente um texto? Porque é verdade. Como é que um professor não está habituado a ler um programa e a pensar sobre esse programa e os seus fundamentos? O manual é suficiente porque os manuais estão cada vez melhores e a papinha está toda feita. O problema é que eu tenho de pensar do ponto de vista dos desafios que se colocam, todos os dias, profissionalmente.

E: Quais são, no fundo, os grandes desafios desta nova forma de organização curricular?
RT:
É pensar de forma contextualizada. É ser capaz de olhar para um programa, perceber quais os objetivos, e pensar porque é que isto é importante. O liberalismo português em História no 6.º ano de escolaridade para alunos de 11, 12 anos. O que posso dizer a um menino aos 12 anos que perceba o século XIX?
 
AC: O grande desafio é pensar a ação docente. Acho que os professores dão como garantido que o seu trabalho e a sua relação com os alunos fazem aprender. O desafio agora é perceber até que ponto a sua relação com a aula e com os alunos não os impede de aprender. Os professores dizem, generalizadamente, que os seus alunos não aprendem nada. Mas não conseguem perceber até que ponto são eles que estão a impedir de aprender, pelo tipo de aula que desenham, pelo tipo de comunicação que utilizam, pelo tipo de coisas que andam a pedir.

E: E os professores estarão disponíveis para se questionarem? Questionar as suas práticas?
AC:
Alguns estão, alguns já vão nesse caminho.

RT: Vai ser difícil, mas tem que ser, até porque é o futuro que está em jogo. É preciso que estas coisas tenham significado e, em larga medida, é uma responsabilidade inicial dos professores da forma como planificam e da forma como pensam o que vão propor aos alunos. Há um processo de intermediação de trabalho que precisa de ser feito com algum significado. Não estou dizer que se devem retirar as dificuldades aos alunos.

AC: Isto se for feito com os professores terá mais impacto. Os professores não estão sozinhos na mudança. Daí a importância de trabalharem em equipas educativas.

RT: Vai levar tempo e vamos ter de respeitar as próprias dificuldades dos professores.

AC: Há professores que vão demorar mais anos, outros que vão aderir, outros que já sentem necessidade de fazer um trabalho com outros colegas, outros ainda desconfiam muito deste projeto. Há gente que ansiava outra forma de trabalhar.

E: Se o modelo continuasse como está?
AC:
Já não estava a acontecer nada nas escolas. Os professores estão a entrar em burnout. A guerra do professor é tirar o telemóvel da mão do aluno em vez de o incorporar no trabalho.

E: E com este novo projeto abrem-se novas possibilidades: semanas temáticas, projetos interdisciplinares…
RT:
Exatamente.

AC: E é para muitos meninos a última grande oportunidade. A vida nunca mais lhes trará um professor de Física, de Filosofia, alguém de Literatura. A escola não pode passar ao lado desses alunos e passa porque metade do tempo estão aos gritos com eles, zangados com eles, e eles zangados com a escola. Entre as faltas, do vai para a rua, não me chateies, chama a diretora, a escola é tão pouco produtiva. Não vai ser nada simples, há escolas e professores que vão precisar de mais tempo, e há professores que nunca compreenderão.

RT: Há questões que qualquer professor tem de responder. O que é que desejo que os meus alunos aprendam. O que é que eu vou fazer para que os meus alunos aprendam aquilo que desejo que aprendam. E como vou avaliar isso, quer o que eles aprenderam, quer aquilo que eu fiz. Há escolas que não precisam deste despacho para nada, porque já estão a fazer o seu caminho. Há escolas que têm potencialidades para fazer outras coisas e, portanto, precisam do enquadramento, do apoio, para fazer isso. E há professores que vão resistir.

É preciso aprender a pensar. Para o projeto ser bem-sucedido, os professores são obrigados a pensar sobre o que é que andam a propor aos alunos, a pensar qual é a magnitude dos desafios culturais com que estão a confrontar os alunos.

Sara R. Oliveira
Fonte: Educare